Profissionais da educação devem ter formação para orientar os estudantes sobre temas relativos à diversidade
Jacqueline Pontevedra
Pelo quarto ano consecutivo, o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+. De acordo com o Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+, em 2021, 316 pessoas foram vítimas de LGBTfobia, com casos de violência e até assassinato – um aumento de 33% em relação a 2020. No caso de pessoas trans, a expectativa de vida é de menos de 35 anos apenas. Esses dados mostram que a escola deve ser um espaço de convivência com a diversidade.
Num mundo cada vez mais plural, os profissionais da educação devem investir numa formação continuada que os ajude a ter um olhar sensível para desconstruir equívocos e visões preconceituosas sobre temas relativos à identidade de gênero, orientação sexual, raça, etnia, religião, inclusão e outros. Nesse contexto, a Gerência de Pesquisa, Avaliação e Formação Continuada para Gestão, Carreira Assistência, Orientação Educacional e Eixos Transversais (GOET) da Subsecretaria de Formação Continuada dos Profissionais da Educação (EAPE) – em parceria com a Universidade de Brasília – promoveu a mesa de debate Transcendendo o Gênero: Universidade, Pesquisa e Educação Básica em diálogo.
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LGBTQIA+ é um movimento político e social que defende a diversidade e busca mais representatividade e direitos para essa população. O nome demonstra a luta por mais igualdade e respeito à diversidade. Cada letra representa um grupo de pessoas: lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, assexual e o sinal + para reconhecer outras possibilidades de orientações sexuais.
Trans – Pessoas cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo biológico e, por conseguinte, ao gênero atribuído no nascimento.
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Esse evento faz parte de um projeto maior chamado ‘EntreDiscursos’ – realizado pelo NELis (Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade) da Universidade de Brasília em colaboração com a Secretaria de Educação. “A nossa ideia com esse evento, como Paulo Freire fala, é justamente poder E S P E R A N Ç A R. Poder pensar que corpos e existências são possíveis para além da dor, pois a gente sabe quais são os números de violência quando nos referimos às pessoas LGBTQIA+. E o mais importante, para além desses tristes números, é pensar que essas existências são possíveis e que a gente precisa trazer esses diálogos pensando o Currículo em Movimento da Educação Básica, pensando na pesquisa que é feita na Universidade de Brasília, na formação dos nossos professores e, principalmente, nos estudantes”, explicou o formador da EAPE e um dos responsáveis pelo evento, Leonardo Café.
Para conduzir o debate, a Doutora em Linguística, Carolina Gonzalez, apresentou os resultados da pesquisa “Identidade de gênero no espaço escolar: possibilidades discursivas para a superação da heteronormatividade”. Nesse trabalho, desenvolvido entre os anos de 2015 e 2017, as políticas públicas, os currículos e as normas existentes foram analisadas e, no âmbito da formação continuada realizada na EAPE, o curso Cine Diversidade foi apresentado como uma ação importante para trabalhar o tema da diversidade em sala de aula e como um referencial para ajudar a combater a LGBTfobia.
“Em breve vou completar 20 anos como professora e, na prática docente, sempre percebi que qualquer discussão relativa a gênero ou a sexualidade está sempre atravessada pelo medo, pelo fundamentalismo religioso, pela perseguição e pela violência. Como também sou socióloga, muitos colegas de trabalho solicitavam minha ajuda para trabalhar essas temáticas e para ajudar os estudantes. Por exemplo, numa escola que trabalhei, um professor de matemática era muito resistente a usar o nome social de uma aluna do sexto ano, que é trans. Então, o coordenador pedagógico solicitou que eu conversasse com esse educador, mas, cabe esclarecer, não existia uma formação sistematizada no ambiente da escola”.
Por perceber que realizava um trabalho solitário, a professora Carolina sentiu necessidade de problematizar a questão e de estudá-la de forma sistematizada. “Então, ao longo da pesquisa, os dados e as informações obtidas apontaram que muitos professores e muitas professoras não possuem familiaridade com as temáticas. Portanto, é necessário que a gente discuta gênero e sexualidade na escola, porque estamos falando de vida, de subjetividade, de pessoas que sentem medo, opressão, que são diagnosticadas com depressão. Muitas tentam o suicídio e tantas outras são vítimas de homicídios motivados por homofobia, transfobia ou lesbofobia. Portanto, a formação e a informação são imprescindíveis para que nossos estudantes consigam vencer as estatísticas que os tiram das escolas”, explicou Carolina. É importante, portanto, que a linguagem e os discursos sejam inclusivos para que as violências não sejam perpetuadas e para ampliar os olhares sobre as diferentes formas de ser e de existir.
Quem acompanhou as questões propostas pelos integrantes da mesa de debate foi a orientadora educacional do Centro de Ensino Médio 3 de Taguatinga, Vera Lúcia Araújo Barros. De acordo com a profissional, há 1.300 estudantes nessa escola e, desse número, 12 alunos se identificam com algum segmento da população LGBTQIA+. “Não podemos ignorar a diversidade existente dentro da escola (independente da modalidade) e nós, profissionais da educação, precisamos conhecer os subsídios legais, precisamos buscar formação para acolhermos os estudantes e sermos a ponte também com as famílias. Geralmente, os estudantes LGBTQIA+ chegam muito sofridos, marginalizados, estigmatizados e estão em situação de vulnerabilidade, situação de rua, pois foram excluídos da própria família, foram mandados para fora de casa. É muito sofrimento e a escola deve ser uma instituição pública de conhecimento e aceitação. Portanto, trabalhamos a temática como um dos eixos transversais do Currículo em Movimento e, dentro da Orientação Educacional, damos o acolhimento necessário”, explicou Vera.
A orientadora também destacou a importância do evento, promovido pela EAPE/UnB, como uma ação pedagógica que promove o diálogo entre diferentes atores e dá voz para uma população que é marginalizada, invisibilizada e que fica longe dos bancos escolares. A estudante do Centro de Ensino Médio 3 de Taguatinga, Vitória Ferreira, foi convidada a participar da mesa e concorda com Vera. “A realização dessa mesa redonda permite que eu ajude outros estudantes trans. A educação é importante para as pessoas trans, pois o único trabalho que nos oferecem está na rua e a gente está provando o contrário. Por exemplo, uma pessoa trans, preta e periférica pode terminar o ensino médio, pode ser professora, ser médica, ser advogada, pode ser o que ela quiser. Esse tipo de debate salva vidas”, enfatizou Vitória. A partir da fala da jovem, de acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), cabe ressaltar que 90% da população trans no Brasil tem a prostituição como fonte de renda e única possibilidade de subsistência.
Foi na escola que a estudante encontrou apoio e espaço para orientar outros colegas trans a quebrar barreiras. Ela apresenta as legislações referentes ao uso do nome social e oferece ajuda também para que alguns alunos consigam enfrentar o medo da violência que sentem nos diferentes espaços do colégio. No passado, Vitória era Gustavo Henrique. Enfrentou uma trajetória marcada pelo preconceito e pela discriminação, mas hoje se sente fortalecida. “A trajetória é difícil, mas sou uma guerreira, uma vencedora, por isso escolhi o nome Vitória. Minha mãe disse que sou uma vitoriosa e eu sou”, enfatizou. Portanto, valorizar a escuta dos estudantes, com suas diferentes vivências e seus variados contextos, é possibilitar que cada educando tenha contato consigo mesmo, de forma verdadeira e autônoma, e se torne um sujeito construtor de sua história.
Além dos professores Leonardo e Carolina e da estudante trans Vitória, a mesa de debate foi composta por outros convidados trans: Manuela Rodrigues, travesti, professora do Instituto Federal de Sergipe e doutoranda em Literatura pela Universidade de Brasília; Lorran Carvalho, homem trans, professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal, e Kaleb Salgado, homem trans, estudante de pedagogia, pesquisador e coordenador do IBRAT – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades. Outros profissionais da educação e estudantes do Centro de Ensino Médio 3 de Taguatinga e do Centro de Ensino Médio 2 de Ceilândia também participaram do debate.
Para representar a Subsecretária de Formação Continuada dos Profissionais da Educação, Maria das Graças de Paula Machado, a assessora da Diretoria de Organização do Trabalho Pedagógico e Pesquisa, Luciana Ribeiro, participou do evento. Outros convidados que estiveram presentes foram: O Doutor em Linguística pela UnB e integrante do NELis, Gersiney Santos e o professor da Subsecretaria de Educação Inclusiva e Integral, jornalista e fundador do segmento LGBT Socialista do DF, Flávio Brebis. O evento ocorreu no dia 27 de junho, às 14h, no Pátio da Diversidade, que fica na sede da EAPE, na 907 sul.
Importância da Formação Continuada
A professora de Filosofia do Centro de Ensino Médio 2 da Ceilândia, Mayara Moreira, trabalha com 230 estudantes. Desse grupo, 15 estudantes que se identificam com a população LGBTQIA+ aceitaram participar do evento realizado na EAPE. “Eu trabalho com o tema da diversidade direcionado aos direitos humanos, pensando as diferenças, ressaltando como nós somos plurais. Explico a existência de padrões, mas há pessoas que não se encaixam nesses padrões e está tudo bem. Por exemplo, eu tenho alunos que não conseguem se encaixar no gênero masculino ou no gênero feminino. Com certeza, são estudantes que entram na margem da vulnerabilidade, pois eles não pertencem ao padrão socialmente definido e podem sofrer algum tipo de violência na escola e fora dela. Então eu mostro a pluralidade existente dentro de uma sala de aula apenas e espero que os alunos compreendam que eles fazem parte de um todo, mas esse todo não é igual, não é homogêneo, ele é heterogêneo e diverso. E, inclusive, isso traz muita beleza para o mundo”, enfatizou.
Mayara considera que a formação é fundamental para a prática pedagógica. Em 2016, ela também participou do Curso Cine Diversidade e considera que levar a temática da diversidade para a escola, por meio da linguagem audiovisual, é uma forma eficiente de dialogar com os estudantes. “Os filmes apresentam perspectivas bem legais para o processo de ensino e de aprendizagem e se a gente não está estudando, os nossos alunos percebem isso. Então, levar sempre pautas que refletem a vida deles é muito importante e a formação nos ajuda a trabalhar essas temáticas de forma responsável, com uma base sólida, pois se trata da vida dos nossos estudantes”.
A estudante A. S., de 16 anos, encontra no Centro de Ensino Médio 2 de Ceilândia o acolhimento e o conhecimento necessários para afirmar sua bissexualidade. Ela esteve presente na EAPE e reconheceu a importância do debate para os estudantes. “Esse tipo de palestra é uma ação que toda escola deve promover para ajudar outros alunos e os professores precisam ter esses conhecimentos”. Além desse aspecto, a jovem dá algumas orientações para aqueles que se sentem com dúvidas, com medo. “Primeiro, dê tempo a si mesmo, converse com pessoas que tragam conforto e segurança, busque informação sempre e tente encontrar na escola pessoas que possam acolher e orientar”, finalizou.
Quem também participou foi a estudante de Pedagogia e pesquisadora da UnB, Aisha Luíza, de 22 anos. Ela se apresenta como uma mulher travesti, transexual e afirmou que a realização de um evento que aborda a diversidade sexual pode salvar muitos estudantes da violência, da morte. “Os estudantes trans são indivíduos sociais, pois os corpos trans precisam ser enxergados na escola. Há muitos alunos com depressão e que cometem suicídio, pois seus corpos são desumanizados, são invisibilizados. Nós – pessoas trans – só queremos viver e conquistar nosso espaço na escola, na sociedade”, explicou emocionada.
Esses exemplos evidenciam a importância dos profissionais da educação da rede pública de ensino do Distrito realizarem uma formação continuada sobre temáticas relativas à diversidade sexual, pois as demandas, os conflitos, as dúvidas e a necessidade de orientações e informações são evidentes e urgentes.
Nesse contexto, a Gerência de Pesquisa, Avaliação e Formação Continuada para Gestão, Carreira Assistência, Orientação Educacional e Eixos Transversais (GOET) da EAPE, baseada no Currículo em Movimento da SEEDF, oferece o curso Reconhecendo a diversidade sexual na escola, de 60h. Neste semestre, 80 cursistas realizam a formação. “Realizar esse curso é materializar uma realidade na qual essas discussões são possíveis com os profissionais da educação. Também é acreditar que a formação continuada pode gerar mudanças sociais a partir da escola e precisamos trazer esse diálogo. Cabe destacar que a escola é um espaço de convivência com a diversidade, mas isso não quer dizer que a escola seja harmônica. Às vezes, as pessoas confundem diversidade e harmonia. Precisamos ressaltar a contradição existente de maneira positiva. Muitas vezes, a escola tenta apagar as contradições dizendo que todo mundo é igual – o que não é verdade, pois nem todos são acolhidos da mesma forma, uma vez que há a celebração da heterossexualidade como única possibilidade de existir, por exemplo. Tudo isso evidencia o que está previsto no Currículo em Movimento: devemos entender a diversidade como possibilidade de sobreviver e adaptar-se enquanto sociedade”, ressaltou Leonardo Café.
Além do curso, os professores podem solicitar que a temática da diversidade seja trabalhada durante a Sala de Coordenação, que integra o Projeto EAPE vai à Escola. O trabalho consiste em ações formativas com 3 horas de duração e envolve temáticas variadas. Os encontros ocorrem às quartas-feiras, de forma presencial ou síncrona (por meio do Canal EAPE no Youtube e/ou via plataformas Google Meet, Microsoft Teams ou Zoom).
Neste semestre, oito escolas de diferentes regionais de ensino, as Unidades de Educação Básica das Coordenações Regionais de Ensino do Núcleo Bandeirante e Ceilândia e o Centro Integrado 18 de maio (da Secretaria de Justiça do Distrito Federal) solicitaram essa formação. De acordo com Leonardo, formador da EAPE, em média, 300 profissionais participaram dessa ação.
Nesse contexto da formação continuada, permitir que o tema da diversidade sexual faça parte das atividades pedagógicas na escola é permitir que os silêncios e as ausências – discursos que perpetuam a violência – sejam substituídos pelas possibilidades de diálogo e respeito às diferenças.
Falar de diversidade é falar sobre as variadas possibilidades de ser e de existir, sobre conhecimento, sobre direitos, sobre segurança, sobre saúde, sobre desafios e sobre lutas. É também falar sobre conquistas e, principalmente, é falar do outro e sobre o outro. É sobre A F E T O!
Fundamentação legal
Para orientar o trabalho pedagógico e facilitar a consulta, alguns documentos oficiais e orientadores sobre a diversidade sexual estão disponibilizados nos links abaixo:
Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTIs no Brasil
Podcast Informativo EAPE
A diversidade sexual é um dos temas que orientam um dos cursos promovidos pela Subsecretaria de Formação Continuada dos Profissionais da Educação. Esse foi o tema da quinta edição do podcast Informativo EAPE. Esse trabalho apresenta reportagens de até cinco minutos que são compartilhadas nas principais plataformas de streaming, pelo Whatsapp e ficam disponíveis aqui também.
Para ouvir o áudio, é só dar o play no link abaixo: